Por Natália Gomes Barreto (*)
SOCORRO
O incessante barulho dos pássaros e o mugido do rebanho pareciam anunciar a hora de despertar e Maria acordava assim todos os dias; e todos os dias, como aquele sábado, pareciam ser sempre iguais para a menina. Maria era chamada de Socorro. Seus pais a chamavam assim desde que tinha nascido; aliás, todo mundo a chamava assim, seu nome de verdade era Maria Gomes, mas foi chamada de Socorro por causa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, promessas que a mãe fez quando a menina nasceu e na hora de registrar no cartório, o pai esqueceu qual foi o santo benfeitor da promessa e colocou só Maria. Mas mesmo assim ficou sendo chamada por Socorro que era bem diferente das outras meninas, pois ela era uma das poucas “menina muié” da região da Vila em que morava, não sabia lidar com os afazeres domésticos, nasceu de família pobre- dessas de amanhecer o dia sem ter nada para comer – e nesse tipo de família a primeira tarefa que se aprende é ajudar a mãe nos trabalhos de casa, principalmente na Vila Antonico, como era chamada pelos habitantes. A Vila era uma comunidade de gente muito humilde – e tinha muito desses tipos de família – tinha gente de bem e de mal, homens trabalhadores e os que viviam a vida de malandragem, mulheres de respeito, sem respeito, fofoqueira. Vixe ! Tinha de tudo lá na Vila.
Socorro gostava de brincar, como uma criança normal, com seu irmão Francisco que era um rapazote bonito. Ele tinha uns dezesseis ou dezessete anos e sentia um carinho especial por Socorro que devia por ser a mais nova dos seis irmãos. Chico a protegia de qualquer peripécia que aprontasse. Ela era bem arteira, e o rapazinho quando não estava ajudando o pai na roça, passava o tempo a fazer brinquedos para a menina que estava sempre ao seu lado, fosse para comer, fosse para brincar, fosse para dormir; é que eles dormiam na mesma rede, porque seu Antônio, o pai deles, não tinha comprado, ainda, a rede de Chico que se rasgou de tão velha que era, pois já fazia uns seis meses e não tinha sobrado nem um trocado que desse para comprar a rede de Chico dormir.
Socorro era aplicada na escola, gostava de fazer cartas. As pessoas, que moravam por perto, lhe pediam para que escrevessem para os parentes que moravam distante e a menina fazia. Não era por ter apenas dez anos que lhe tratavam como criança, ela era diferente – já disse! -, tinha jeito de gente grande, se preocupava com os preços altos das mercadorias que seus pais não podiam pagar, se preocupava com as pessoas que não se consultavam por não ter médico no posto de saúde da Vila, entrava até nas conversas dos adultos, você acha que isso é coisa de criança?
É, realmente essa menina era de se admirar. Seus pais, Antônio e Clotilde, nem sabiam da grande virtude que Socorro era dotada. Eles eram analfabetos e não davam valor a esse tipo de gente, que quer saber de tudo, que fica se metendo em toda notícia que escuta no rádio, dando seus palpites em tudo que vê, que quer ser “gente” sem ser, isso não é coisa de criança e, principalmente, de menina muié. Seu Antônio sempre achava esquisito o jeito de Socorro; para ele, menina que crescia assim tava perdida na vida.
Imagine só, ele queria tirar Socorro da escola só porque lhe achava muito sabida, mas a menina – que de boba não tinha nada! – disse que não podia sair da escola, pois ela nem tinha aprendido as contas de somar e de vezes que o pai achava necessário e de bom tamanho aprender na escola, para “quando chegar o tempo da colheita do algodão, ela ir somando para saber quantos sacos eles tinham colhido”.
Socorro se viu na necessidade de mentir para o pai. Escondeu a verdade, ela já sabia das contas de soma e multiplicação, fazia tempo, e ainda mais: sabia até diminuir e dividir as contas que aparecia nos problemas da escola, mas com as constantes iminências que o pai fazia – que lhe tiraria da escola quando ela aprendesse calcular – a menina não podia dar sinais que soubesse tanto. Chegou até a pedir a sua professora que, na reunião de pais, dissesse à sua mãe que ela não tinha aprendido, ainda, matemática nenhuma.
A angústia que Socorro sentia, por esconder uma notícia que para ela era tão importante, era tamanha e ela, vez por outra, se pegava pensando em como e quando iria dizer ao pai toda a verdade, pois mentir para os pais era feio. Seu Antônio era para ela como um herói, um gigante, ou melhor, um Deus. Tinha aprendido, nas aulas de catecismo, que pecava quem mentia, roubava, matava, e principalmente, quem desobedecia a seus pais.
A menina se sentiu ainda mais aflita, quando viu seu pai, que não tinha nenhuma letra, ser enganado por um negociante, que veio até sua casa comprar todo o algodão que lhe rendera da colheita daquele ano. Socorro viu o comprador oferecer ao seu pai uma quantia que não valeria todo o algodão que tinha para vender; nem que fosse o pior algodão da região, o mais mortiço, ainda não valeria o preço que o homem pagaria ao pai. Era estranho o que acontecia, a menina em meio a toda aquela situação. Era como se o que estivesse presenciando fosse um pecado mortal, mas ela saberia lidar com toda aquela situação, mas não poderia fazer nada. Pensou Socorro em abordar o comprador e lhe pedir que repetisse a conta do algodão, porque sabia que não era justo enganar seu pai. Era como se as palavras do negociante entrassem como espinho em seus ouvidos e chegassem rasgando como uma flecha e transpassasse seu pequeno e ingênuo coração.
A cena era tão diferente de tudo o que a menina vivera até aquele momento. Ela, em meio a um ambiente de paz e tranquilidade, brincava de bila, de se esconder, de boneca feita de sabugo de milho e galinhazinha do tronco de pereiro, e, de repente, deparava-se com tanta injustiça. Todo o suor que viu seu pai derramar diariamente, no plantio e na colheita do algodão, seria limpo, agora, por aquelas poucas notas que não valeriam sequer uns três ou quatro meses de trabalho.
A menina, ouvindo com atenção a conversa do comprador, levantou-se lentamente da cadeirinha de madeira que o pai fez para ela na última semana santa e pediu educadamente que o homem repetisse aquela conta. Ela já tinha notado que ele era jeitoso para calotear e percebeu isto por causa da conversa bonita, dos arrumadinhos (característicos desse tipo de gente). Socorro tinha dessas, quando via gente desse tipo ou acreditava numa coisa, ninguém poderia lhe contrariar. Ela sentiu, ao dirigir a palavra aquele homem tão bem pronto, como se seu mundo começasse a se revolver, como se o mundo girasse. Já tinha se lembrado das inúmeras ameaças do pai de tirá-la da escola, mas conviver com aquela mentira, mesmo que fosse uma omissão e também para o seu bem, fazia se sentir culpada, pois para a menina era como se fosse um pecado, um defeito. Então, ela viu a oportunidade de livrar-se daquela culpa. Seu pai surpreso, sem entender a ação da filha, imediatamente pediu desculpas ao negociante e foi logo contornando a situação que Socorro lhe pusera, dizendo-lhe que não sabia mais o que fazer com ela, pois a cada dia que passava ficava mais astuta e essas coisas que ela falava ninguém poderia levar em apreço, pois na sua idade as crianças não sabiam direito o que diziam.
Seu Antônio, envergonhado com o ocorrido, mandou Socorro entrar em casa lhe avisando logo da surra que ia levar, para deixar de se intrometer nas conversas de adulto. Socorro, com os olhos esbugalhados e verdes como eram, correu até a cozinha e pediu à sua mãe para dizer a seu Antônio que já tinha aprendido até mais do que uma simples conta; tinha aprendido a nunca mentir para uma pessoa tão importante para ela. Convencida, Clotilde correu até o alpendre, onde estava acontecendo a negociação, e, disfarçando o nervosismo, pediu a Antônio que entrasse em casa porque precisava dele para um serviço. Antes que entrasse na sala da frente, ela já foi lhe dizendo que ele não podia acreditar no homem, pois Socorro estava certa, a menina tinha toda razão de não confiar no comerciante, pois ela já tinha aprendido a fazer contas até demais e era pra ele confiar na menina ao menos uma vez. Aquela não era mais uma peripécia da garota, realmente poderia perder a metade do lucro da colheita daquele ano.
Antônio voltou ao alpendre onde ainda estava o homem, sentado já no banco de madeira que tinha ali por perto, acomodado e meio desconfiado, olhando por baixo e já sabendo que aquilo que estava fazendo não era uma das coisas mais certas de se fazer. Mas ele vivia disso e já estava bem acostumado a calotear cabra besta e bruto como Seu Antônio. Foi assim, ao desconfiar da fineza do negociante, que pediu que voltasse outro dia para falar dessa proposta, pois naquela hora estava de cabeça quente e não sabia as contas de cabeça, mas ia ver se dava certo vendê-lo toda a colheita do algodão. O homem foi embora na certeza de voltar outro dia e comprar pelo mesmo preço que tinha oferecido antes e Antônio tinha a certeza que uma surra grande Socorro ia levar, por ter dado seus palpites nas conversas de adulto. Como sempre fazia!
Quando entrara em casa, o pai procurou a moleca que já tinha escapado da sova, correu por entre o matagal que rodeava a casa, onde ninguém pudesse encontrá-la. E, dessa forma, passou o resto do dia sem aparecer pelas redondezas, com medo da surra que o pai lhe prometera. Beirando às seis horas da tarde, ela aparece com os olhos inchados de chorar, barriga vazia, sem sequer um grão de arroz que pudesse lhe dar sustento. Entrou em casa pela porta dos fundos e, avistando o pai jantar por um buraco que tinha na parede da cozinha, começou a tremer, não sei se de fome ou de medo. A menina caiu em desmaio, sem que ninguém tivesse notado sua presença até então. Isto aconteceu somente com o barulho do corpo quando caiu no chão batido de barro que era o da velha cozinha de sua casa. Com o corpo estendido, o coração levemente latejante, ouvira longe, muito longe, o sussurro e o calor de seu pai estendido sobre seu colo, meio desacordada, pouco sem sentido, sentindo tudo que gostaria de sentir naquele momento: a mão leve de sua mãe a lhe apanhar a cabeça, e repousando-a em suas pernas, e o pai? Reorganizando tudo ao redor de si para lhe tornar aquele momento mais confortável. Já coberta com um lençol e afagada pelo casal, que fazia promessas à menina mesmo que ainda não totalmente consciente, mas ouviu (ou sonhou?) seu pai dizendo que não iria mais lhe tirar da escola e, verdadeiramente, ela não queria acordar, de jeito algum, do sonho inacreditável que tinha acabado de acontecer.
(*) Conto premiado em nono lugar em Assú – RN no “Escrínio da Literatura Potiguar”, I Concurso Assuense de Literatura – Celso Dantas da Silveira -Contos, Poesias e Trovas 2011; Coleção Assuense, vol. 18. Neste conto Natália adotou o psudônimo Estella Queiroz.
Natália é Pós graduada em Literatura Luso Brasileira, graduada em Letras pela UERN – Campus Avançado de Assú e professora em Quixelô.